O infeliz episódio mencionado no título aconteceu dentro de uma produtora de vídeo responsável por um programa semanal de televisão sobre música, semelhante aos que podemos assistir na MTV. Ou seja, em meu próprio local de trabalho.
Ali, além de receber cerca de 10 vezes menos do que um irlandês ganharia na tarefa que eu desempenho, convivo diariamente com pelo menos três infrações que as leis trabalhistas brasileiras se incumbiriam de punir: receber menos que o salário mínimo (por aqui é de pouco menos que 9 euros por hora); acumular funções (cinegrafista e editor); e não ter registro em carteira.
Como imigrante, não entro em muitos méritos para questionar com a chefia o descumprimento de algumas leis, até por que no Brasil também não é incomum encontrar imigrantes latinos ou coreanos sendo explorados na cidade de São Paulo. A crise econômica por esta parte do mundo é bem mais grave do que fazem crer as notícias sobre a crise brasileira que por aqui chegam. Por enquanto, é melhor trabalhar do que ter que regressar ao Brasil.
A produtora à qual eu pertenço não é grande. A equipe é formada por um apresentador, uma produtora, um editor, eu e o diretor, que exerce também a função de cinegrafista. No dia em que fui obrigado a ouvir o despropósito que dá título a esta coluna, o preconceito estava menos sutil que de costume. E um certo desconforto já havia tomado conta de minha alma, levando consigo o sorriso e as risadas que costumavam dar o tom de nossas conversas.
Em certo momento, o diretor fez, como já o fizera em algumas outras oportunidades, uma piada preconceituosa sobre os brasileiros. Não pude entender ao certo a que se referia e lhe pedi que repetisse a gozação, mas ele não o fez. Então, me propus a falar em português. Chamei o camarada de mala e paralelepípedo, palavra cuja sonoridade já é suficiente para embaralhar até mesmo os ouvidos educados no Brasil. Nessa hora, o apresentador, um jovem com alguns anos a mais que eu, mas que me surpreendeu pela simpatia e solidariedade durante toda minha estada na produtora, arriscou-se a reproduzir em português uma das frases universais que a ele eu havia ensinado em nossa língua: “Viny, o chefe é um filho da puta”. Dei risada...
O diretor, com a cabeça enfiada num buraco com pelo menos 2 metros de profundidade (afinal, o colega aprendera alguma coisa num idioma diferente do seu, enquanto ele...), não conseguia esconder a vermelhidão que tomou conta de pela branca que lhe recobre um rosto pouco familiar aos raios de sol. Mas então soltou o impropério: “Português é uma língua falada por macacos”. Um filme se passou na minha cabeça... Todas as notícias, de várias partes do globo, relatando racismos recaíram sobre meus ombros.
Sentindo que em pouco tempo algumas lágrimas iriam me denunciar, encontrei forças para montar, em inglês, uma frase que seria a última daquele dia: “Macaco é você, incapaz de diferenciar francês, português e espanhol”.
Não consegui disfarçar o desconforto de ouvir uma afirmação tão inútil quanto desprezível. No fim do expediente, fui embora sem trocar qualquer palavra. Regressei ao lar e continuei calado, sem esboçar meias ou inteiras palavras com os colegas de república, todos tão estrangeiros quanto eu. Tomei banho, jantei e dormi.
Acordo de ressaca. Com um mal estar que uma única noite de sono seria incapaz de curar. O que poderia fazer? Estou no país do cara, ele é meu chefe, preciso continuar estudando. Mas não poderia deixar florescer em mim sentimentos até mais arcaicos que os dele. Teria que ser, mais do que nunca, inteligente. Inteligente o suficiente para me sentir bem, para responder tal ofensa e, com sorte, mudar um pouco a cabeça de um racista como aquele.
Voltei ao trabalho ainda com a cara fechada. Os olhos tornaram a querer me denunciar. Fui abordado pelo apresentador do programa, que me perguntou o que se passava. Desabafei. Disse que não agüentava preconceito e racistas perto de mim; que no Brasil já havia lutado contra isso, e não teria vindo para ser humilhado no continente ao qual chamam de primeiro mundo. Ele se desculpou pela grosseria do chefe e sugeriu que com ele conversasse, admitindo a hipótese de que, em sua santa ignorância, o agressor fosse incapaz de imaginar que macaco não é elogio, mesmo se dito aos que amam uma natureza de fauna tão exuberante quanto a brasileira.
Pois bem. No fim do expediente pedi uma conversa. Disse que não havia gostado do que ouvira. Ele se desculpou naquela modalidade de desculpa sem o olho-no-olho que revelaria a sinceridade que nos sai dos corações. Na língua do camarada, que agora me soa mais familiar, disse-lhe o que aconteceria com ele se tivesse se manifestado daquela maneira no Brasil.
Que o primeiro a pegá-lo seriam os policiais, que antes de colocá-lo na cadeia já lhe dariam umas boas porradas. Acrescentei que nem os euros pagariam o valor da fiança, e que, por ser branco e racista, teria seu “PINK ASS” destruído na prisão. Disse que, caso tivesse o azar de não ir para a cadeia, na rua sua sorte não seria muito melhor, voltando a citar o “PINK ASS” e apontando para o pé da mesa!
O timbre de voz do camarada ficou bem diferente de quando pedira as desculpas pouco sinceras, pois finalmente, no único idioma que entende, percebera quanta bobagem havia saído de sua boca. Meu coração voltou a bater no compasso normal. Peguei minha bicicleta e voltei para casa. Aliviado, expliquei ao panamenho o motivo de ter permanecido mudo na noite anterior. Como latino e igualmente vítima de preconceitos, riu quando lhe contei o desfecho da história!
Daniel Carvalho - Campinas -SP
ResponderExcluirVocê devia ter convidado ele para a Copa de 2014. E orientar ele a fazer uma faixa com o que ele disse e abrir aqui no Brasil. rs
Cara, estou deixando uma das escolas em que dou aula, em Santos, porque a escola não me dá espaço para ensinar não só a Redação, mas valores. Continuo no Zontes-Uirapuru porque dessa pequena escola (de grandes valores) saem meninas e garotos que, quando viram adultos, viram adultos de caráter como você. Teve muito culhão e dignidade, Vinícius, cara, lavou a alma com sua atitude! E ontem ocorreu fato semelhante no Brasil, entre na homepage do UOL, Terra ou IG que verá mais um caso de racismo no futebol.
ResponderExcluirPuta abraço, irmão, e vou comemorar sua coragem hoje passando num posto aqui perto de casa que tem uma Guiness geladinha.
Imagina quando se sofre preconceito pro ser de outra região do Brasil... Sei exatamente o que você sentiu!! mas seja forte proque tem muita gente torcendo por você.
ResponderExcluirEste texto veio a calhar....o companheiro deve ter acompanhado, se não lhe informo, que ontem um ato de racismo mais uma vez envergonha a história do futebol. No jogo pela libertadores de Cruzeiro x Grêmio o jogador argentino Máxi Lopes do Grêmio chamou o jogador negro Elicarlos do Cruzeiro de macaco. Não me comporto com eles a ponto de ser que isso é coisa de Argentino filho da P....Somos todos latinos e respeito” los hermanos”. Gostaria apenas que tb nos respeitasse. O Preconceito é um ato de ignorância e nessas horas penso que a sociedade terrestre não sai do lugar mesmo com o passar do tempo. Seres humanos acabam com o planeta que vivem e acabam um com os outros com sua mediocridade e pensamentos que eu tenho vergonha de expressar mesmo não sendo meus. Há uma chance para humanidade? Eu teremos que pedir ajuda ao Kane Reves do filme o dia em que a terra parou.....Creio que há solução quando leio que os olhos desse companheiro quase lhe entregou!!!Quem dera todos os olhos entregassem seus donos....
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