sexta-feira, 9 de abril de 2010

Na distância entre 164 países, quem sofre é James

A distância de que falamos acima é o fosso que separa a Irlanda e a Libéria no Índice de Desenvolvimento Humano 2010. Na quinta posição, o gelado país europeu consegue prestar assistência milionária aos irlandeses, enquanto que na 169ª posição, a jovem nação africana, mais próxima do Brasil, vê-se muitas vezes na obrigação de colocar os filhos recém-saídos das fraldas para trabalhar. No começo, o fato me causou extrema indignação, mas depois de algumas conversas, me fez compreender a desesperadora situação que vivem essas famílias.

O salário mínimo liberiano está em US$ 60 ao mês, mas apesar de se chamar “mínimo” na legislação, a realidade é bem outra. O segurança do condomínio onde me hospedo relatou-me o quanto recebe: U$ 50. James ainda descreveu um pouco de sua vida: tem cinco filhos, sendo apenas três dele; os outros dois, como acontece em muitas famílias liberianas, são agregados de parentes do interior.

Segundo James, todas as criancas estão na escola, benefício que consome integralmete os vencimentos que recebe. A esposa é a encarregada de colocar a comida na mesa. James chegou a entrar na universidade, onde tentou estudar economia, mas logo no inicio do curso se viu na obrigação de abandonar a sala de aula. Como um bom pai, abriu mão de seu sonho pelos filhos, já que a quantia de US$ 150 semestrais pelo curso superior pesaria demais no orçamento familiar.

Não comentei sobre a situação irlandesa. Avaliei que James não merecia o desgosto de saber que o fato de ter 5 filhos lhe renderia quase 800 euros por semana, dinheiro provido pelo Estado. Como segurança na Libéria seria necessário quase um ano e meio de trabalho para acumular tamanha fortuna. Ele também não precisa saber que grande parte dos beneficiários, diferentemente dele, não querem trabalhar, não educam os filhos e utilizam a verba que recebem do estado generoso na compra de heroína e bebida alcoólica.

Na ultima semana, James quase foi transferido para outro condomínio. Como ele mesmo descreveu, estava tenso. Seu característico sorriso no rosto, que nos ajuda inclusive na identificação em meio aos outros funcionários, não estava no semblante dele. Em uma conversa, fui entender o motivo de tanta agonia. Neste novo lugar, apenas com transporte, gastaria 70 dólares liberianos por dia, o equivalente a US$ 1 (americano). No final de um mês, metade de seus vencimentos seria consumida apenas para os deslocamentos.

Sem muitas alternativas e com os baixos salários, geralmente pagos de forma atrasada, os liberianos, assim como James, desenvolveram um esquema similar ao de consórcio no Brasil, o “sussu”. Mas, ao invés de carro ou casa própria, o beneficiário mensal recebe uma quantia em dinheiro, que varia de 20% a 50% do salário de todos os funcionários. Com um pouco mais de grana, podem investir em um negócio para a família ou pagar a escola dos filhos.

O guerreiro James, que faz milagre com o pouco que recebe, me disse estar à procura de um outro trabalho. Terá em breve a resposta de uma fábrica de plástico, e caso seja efetivado, irá receber US$ 70 por mês. Como ele mesmo disse, novamente com o sorriso no rosto, um bom dinheiro! James sabe o valor que a educação e a vida têm. É sobrevivente de uma sangrenta guerra civil e, mesmo com tudo o que deve ter visto e vivido, ainda arruma espaço para um largo sorriso, um coração cheio de amor para os filhos e a esperança de um futuro melhor para esta sofrida nação.

PS: Os salários pagos abaixo do valor mínimo estipulado em lei e as péssimas condições de trabalho têm sido objeto de grande discórdia entre moradores estrangeiros e o conselho do condomínio. Infelizmente a elite liberiana é “wicked”, como eles mesmo dizem.

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

Uma sociedade chamada knackers

A expressão acima trata-se de uma palavra ainda não trazida para as páginas de dicionários, embora seu significado esteja incorporado ao cotidiano daqui. Talvez até exista no inglês-irlandês, mesmo que eles não gostem que nós, estrangeiros, a pronunciemos. Um professor arriscou-se a uma tradução livre que dava aos knackers o significado de trombadinha, mas acredito ter sido infeliz na tentativa.

Há alguns meses, já venho pensando em escrever sobre essas pessoas aqui assim denominadas. Para mim, é estranho elas existirem num país que detém a terceira posição no Índice de Desenvolvimento Humano e, portanto, um território com muito dinheiro, oportunidades e amparo do Estado.

Os knackers, considerados os pobres daqui, usam roupa nova e exibem marcas como Nike e Adidas. Por opção, escolhem não trabalhar, já que o Estado os financia com uma média de 1.000 euros ao mês. É um valor superior à média salarial dos latinoamericanos. Mesmo com essa grana, eles perambulam pelas ruas de Dublin suplicando por alguma esmola.

Não é difícil encontrá-los deitados ao chão, em plena luz do dia, com alguma seringa espetada no braço para o consumo de heroína. Também não é difícil vê-los, nestes momentos de alucinações, não conseguirem ao menos se segurar com relação às necessidades fisiológicas. É uma cena chocante, que de certa forma entristece e nos faz pensar em como conseguiram descer a um patamar tão degradante.

A questão das drogas e da mendicância é um problema existente em todos os países, mas aqui é diferente. Diferente porque, quem se recusa a dar algumas moedas está simplesmente sujeito a levar uma surra em plena luz do dia. O endiabrado pode chamar alguns amigos e, de repente, cinco, dez, quinze ou vinte aparecem para ajudá-lo a espancar você. Esta violência gratuita não ocorre apenas em função da recusa de algumas moedas, ela pode ser mais barata ainda. Eles podem simplesmente não ter ido com a sua cara.

No último mês, fiquei sabendo de pelo menos três casos de agressões desta natureza. Em uma delas, um polonês morreu com uma facada na altura do rosto depois de ter sido violentado por vinte deles. Em outro, uma irlandesa ficou completamente desfigurada. E no terceiro, um espanhol caminhando na rua recebeu uma latada no rosto e, ao devolvê-la em direção aos arremessadores, foi jogado ao chão e chutado por cinco membros da tribo.

Com mais propriedade, por ter acompanhado de perto, posso relatar um outro episódio de agressão ocorrido com um casal de amigos brasileiros. Em sua primeira semana em Dublin, dentro da estação de trem, recusaram-se a dar esmola a um adolescente. Em pouco menos de um minuto, estavam cercados por mais cinco. A garota recebeu um tapa na cara e colega foi jogado no chão, onde recebeu chutes nas costas, barriga e rosto. Não revidou, com medo de que as leis daqui protegessem mais os knackers irlandeses do que o estudante brasileiro. Dos cinco, quatro conseguiram fugir, um acabou preso.

Antes de entrar na viatura, o agressor deu uma cusparada na cara do policial, que apenas se limpou, já que aqui a lei é severa com relação ao policial que abusa da autoridade. Encaminhado para a cadeia, o knacker pagou 300 euros de fiança e foi liberado. No dia seguinte, meu amigo, ao utilizar a mesma estação, deparou com 20 deles à sua espera. Conseguiu fugir e ficou morando por um tempo em minha antiga casa.

Sempre que recebo essas notícias de violência gratuita não deixo de lembrar dos nossos meninos em estado de abandono nas ruas do centro de São Paulo. Mais injustiçados pelo sistema, não agem com a mesma violência e atrocidade. Pedem esmolas e praticam furtos, mas estão longe de receber 1000 euros por mês para pagar suas contas. Ao contrário, as lembranças mais vivas de violência banal que tenho do Brasil foram cometidas pela classe média ou por policiais. Numa delas, um índio foi queimado na capital do Brasil, e, em outro escândalo, crianças foram covardemente mortas por policiais no Rio de Janeiro, episódio conhecido como chacina da Candelária.

Também me vem à mente o último relatório da FAO, Organização da ONU para Agricultura e Alimentação, que registrou, desde o último mês de janeiro, mais de 3,7 milhões de somalianos necessitados de ajuda humanitária, quase o mesmo número de habitantes que a Irlanda possui. A Somália ainda registra o índice de, a cada cinco crianças, uma sofrer de desnutrição aguda.

Fica difícil compreender porque o rico Estado irlandês ainda auxilia financeiramente essas pessoas e, por conseqüência, a prática destes crimes. Fazer vista grossa para uma situação que se agrava a cada dia tornará este problema cada vez mais grave. Com os 1000 euros, ficaria muito mais fácil investir no tratamento contra drogas, caso este seja o real problema, ou na re-socialização destas pessoas. Fornecer dinheiro e fingir que nada existe só trará medo e receio para os habitantes, principalmente os estrangeiros, alvos preferidos pelos knackers!

terça-feira, 30 de junho de 2009

15% dos irlandeses desempregados


A notícia foi lida em voz alta por Rui, o chinês que divide o apartamento comigo, dando início a uma conversa que envolveu a namorada dele, uma coreana. Dois moradores de longa data na capital irlandesa.

Há cinco anos, Dublin representava dinheiro. Fortuna. Lugar onde os que se ocupavam dos chamados subempregos conseguiam acumular uma boa quantia de euros, o que estimulou grandes fluxos migratórios para este país. Chineses, latinos, árabes e africanos vieram tentar a vida num local que era sinônimo de qualidade de vida.

Brasileiros com nível superior desistiram de suas profissões e se dispuseram a trabalhar como faxineiros, cozinheiros, atendentes de shopping. Grande parte deles conseguiu realizar o sonho de comprar pelo menos uma casa no local de origem, ou viajar por toda a Europa.

Se a situação era cômoda e favorável para estrangeiros, imaginem para os legítimos irlandeses. Pegamos como exemplo a profissão de editor de imagens, a que me encaixo e que conheço melhor. No Brasil, o piso salarial está em torno de R$ 800,00 mês. Em Dublin, estes mesmos 800 se transformam em euros, e são pagos semanalmente. Cerca de 3.200 mês, valor que, convertido para o real, chega a 10.000. Suficiente? A média de gasto dos brasileiros que por aqui está em torno de 500 a 700 euros. Com esse valor, é possível, para nós, latinos, ter mais de 2000 euros de reserva mensal!

Há 20 anos, a situação era bem diferente. Irlanda era sinônimo de pobreza, guerras, tentativas de independência, realidade mudada graças a projetos tecnológicos de multinacionais estadunidenses que por aqui também aportaram.

Facilidade pelo idioma? Relações familiares? (grande parte dos norte americanos têm descendência irlandesa). Bom, o certo é que viraram um país com tecnologia, ocupando o terceiro melhor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do mundo, e com um sistema de bem estar social capaz de garantir dignidade à grande parte dos cidadãos. 

Essa transformação foi ilustrada em uma conversa com Eoghan MC Demond, um jovem camarada irlandês. Há 15 anos, os pais dele compraram uma casa, na qual ainda vivem, por cerca de 19 mil euros. Avaliada há poucos meses para possível revenda, o valor foi estimado em 800.000 euros. Um aumento de 4.000 %. 

O Welfare (bem estar social) é poderoso. Desempregados, mulheres grávidas, pessoas com dependência alcoólica e de drogas, crianças, enfim... Quase toda uma população era beneficiada com 800 euros mês. Cheguei a ouvir de um professor que quem não quisesse trabalhar teria a opção de viver às custas do Estado. Mas em tempos de crise, a mamata acabou!

O fortíssimo assistencialismo já não está tão forte assim. A recusa para empregos que apenas latinos, orientais e africanos faziam, deixou de existir. Para “arrumar a casa”, passaram a contratar irlandeses para estes tipos de serviços. Resultado: muitos imigrantes, agora desempregados, estão retornando para os locais de origem. Os mais antigos, com o sentimento de vitória, pois aproveitaram o melhor período; e os novatos, com olhar de derrota, já que muitos nem o curso de seis meses de inglês conseguiram terminar. 

O que pude perceber é que os novos habitantes dublinenses vieram para este lugar especialmente por conta do aprimoramento na língua. Mas a necessidade de encontrar um trabalho, já que é extremamente dispendioso viver por aqui, está tornando a situação difícil. Conheço muitos que chegaram comigo e estão voltando. Sei de escolas que ocupavam três prédios, e que agora cabem em apenas um. A situação parece assustadora.

E os primeiros, nesta história toda, a serem atingidos são os imigrantes não europeus. Minha primeira pergunta para Rui, após ler a manchete, foi: São 15% de irlandeses, ou da população como um todo? Depois da conversa e das análises, entendi o porque da risada sarcástica e do olhar solitário. A fala mansa gaguejou, “Claro que é só irlandês, eles não se importam conosco”!

quinta-feira, 25 de junho de 2009

O dia em que disseram que nossa língua era de macacos


O infeliz episódio mencionado no título aconteceu dentro de uma produtora de vídeo responsável por um programa semanal de televisão sobre música, semelhante aos que podemos assistir na MTV. Ou seja, em meu próprio local de trabalho.

Ali, além de receber cerca de 10 vezes menos do que um irlandês ganharia na tarefa que eu desempenho, convivo diariamente com pelo menos três infrações que as leis trabalhistas brasileiras se incumbiriam de punir: receber menos que o salário mínimo (por aqui é de pouco menos que 9 euros por hora); acumular funções (cinegrafista e editor); e não ter registro em carteira.

Como imigrante, não entro em muitos méritos para questionar com a chefia o descumprimento de algumas leis, até por que no Brasil também não é incomum encontrar imigrantes latinos ou coreanos sendo explorados na cidade de São Paulo. A crise econômica por esta parte do mundo é bem mais grave do que fazem crer as notícias sobre a crise brasileira que por aqui chegam. Por enquanto, é melhor trabalhar do que ter que regressar ao Brasil. 

A produtora à qual eu pertenço não é grande. A equipe é formada por um apresentador, uma produtora, um editor, eu e o diretor, que exerce também a função de cinegrafista. No dia em que fui obrigado a ouvir o despropósito que dá título a esta coluna, o preconceito estava menos sutil que de costume. E um certo desconforto já havia tomado conta de minha alma, levando consigo o sorriso e as risadas que costumavam dar o tom de nossas conversas.

Em certo momento, o diretor fez, como já o fizera em algumas outras oportunidades, uma piada preconceituosa sobre os brasileiros. Não pude entender ao certo a que se referia e lhe pedi que repetisse a gozação, mas ele não o fez. Então, me propus a falar em português. Chamei o camarada de mala e paralelepípedo, palavra cuja sonoridade já é suficiente para embaralhar até mesmo os ouvidos educados no Brasil. Nessa hora, o apresentador, um jovem com alguns anos a mais que eu, mas que me surpreendeu pela simpatia e solidariedade durante toda minha estada na produtora, arriscou-se a reproduzir em português uma das frases universais que a ele eu havia ensinado em nossa língua: “Viny, o chefe é um filho da puta”. Dei risada...

O diretor, com a cabeça enfiada num buraco com pelo menos 2 metros de profundidade (afinal, o colega aprendera alguma coisa num idioma diferente do seu, enquanto ele...), não conseguia esconder a vermelhidão que tomou conta de pela branca que lhe recobre um rosto pouco familiar aos raios de sol. Mas então soltou o impropério: “Português é uma língua falada por macacos”. Um filme se passou na minha cabeça... Todas as notícias, de várias partes do globo, relatando racismos recaíram sobre meus ombros.

Sentindo que em pouco tempo algumas lágrimas iriam me denunciar, encontrei forças para montar, em inglês, uma frase que seria a última daquele dia: “Macaco é você, incapaz de diferenciar francês, português e espanhol”.

Não consegui disfarçar o desconforto de ouvir uma afirmação tão inútil quanto desprezível. No fim do expediente, fui embora sem trocar qualquer palavra. Regressei ao lar e continuei calado, sem esboçar meias ou inteiras palavras com os colegas de república, todos tão estrangeiros quanto eu. Tomei banho, jantei e dormi.

Acordo de ressaca. Com um mal estar que uma única noite de sono seria incapaz de curar. O que poderia fazer? Estou no país do cara, ele é meu chefe, preciso continuar estudando. Mas não poderia deixar florescer em mim sentimentos até mais arcaicos que os dele. Teria que ser, mais do que nunca, inteligente. Inteligente o suficiente para me sentir bem, para responder tal ofensa e, com sorte, mudar um pouco a cabeça de um racista como aquele. 

Voltei ao trabalho ainda com a cara fechada. Os olhos tornaram a querer me denunciar. Fui abordado pelo apresentador do programa, que me perguntou o que se passava. Desabafei. Disse que não agüentava preconceito e racistas perto de mim; que no Brasil já havia lutado contra isso, e não teria vindo para ser humilhado no continente ao qual chamam de primeiro mundo. Ele se desculpou pela grosseria do chefe e sugeriu que com ele conversasse, admitindo a hipótese de que, em sua santa ignorância, o agressor fosse incapaz de imaginar que macaco não é elogio, mesmo se dito aos que amam uma natureza de fauna tão exuberante quanto a brasileira.

Pois bem. No fim do expediente pedi uma conversa. Disse que não havia gostado do que ouvira. Ele se desculpou naquela modalidade de desculpa sem o olho-no-olho que revelaria a sinceridade que nos sai dos corações. Na língua do camarada, que agora me soa mais familiar, disse-lhe o que aconteceria com ele se tivesse se manifestado daquela maneira no Brasil.

Que o primeiro a pegá-lo seriam os policiais, que antes de colocá-lo na cadeia já lhe dariam umas boas porradas. Acrescentei que nem os euros pagariam o valor da fiança, e que, por ser branco e racista, teria seu “PINK ASS” destruído na prisão. Disse que, caso tivesse o azar de não ir para a cadeia, na rua sua sorte não seria muito melhor, voltando a citar o “PINK ASS” e apontando para o pé da mesa! 

O timbre de voz do camarada ficou bem diferente de quando pedira as desculpas pouco sinceras, pois finalmente, no único idioma que entende, percebera quanta bobagem havia saído de sua boca. Meu coração voltou a bater no compasso normal. Peguei minha bicicleta e voltei para casa. Aliviado, expliquei ao panamenho o motivo de ter permanecido mudo na noite anterior. Como latino e igualmente vítima de preconceitos, riu quando lhe contei o desfecho da história!

domingo, 3 de maio de 2009

O camarada checo


Michal, cuja pronuncia é “Mirrel”, tem 24 anos e trouxe consigo a namorada Aneta para uma nova vida em Dublin. Na República Checa, Michal era lenhador e pedreiro. Mas como a vida deste lado do oceano é bem diferente, o camarada fala fluentemente alemão e tem uma noção básica de inglês. Aneta, como havia estudado inglês por seis anos, tem um bom conhecimento da língua. 

Perguntei se não teriam vontade de ingressar em uma universidade, fazer um curso superior, enfim, ter o mesmo desejo de uma boa parcela da população jovem brasileira. E eles me responderam: “Lá é muito difícil, tem poucas instituições. É preciso estudar muito, em colégios bons e caros”. Na hora lembrei de nosso país, que, ao contrário, tem muitas faculdades, mas que, de tantas, talvez nem seja valioso que as frequente.

Sem curso superior, mas não triste ou sequer pensando em sua sorte, veio para a Irlanda e encontrou no cleaner a forma da sobrevivência. Um trabalho simples, como ele mesmo diz, em comparação com as profissões exercidas na República Checa. Na companhia da namorada, divide 2 andares de limpeza de segunda a sexta num escritório do Banco da Irlanda. 

Na primeira saída com o casal, não foi difícil perceber o primeiro vício do rapaz. Pelas longas caminhadas que Dublin nos proporciona, o jovem checo inclina a cabeça em direção ao chão e faz literalmente uma varredura na busca por moedas. Logicamente que o valor delas, na maioria dos casos, não ultrapassa os 2 centavos de euros, mas talvez valha mais como uma diversão; e com boas gargalhadas quando se tem a sorte de encontrar valores mais altos.

Michal relatou as belezas e a história de seu país. Não soube ao certo precisar o período, mas disse que a arquitetura é de impressionar. Segundo o camarada, é possível andar de motos no gelo por 4 euros a hora, barato pelos padrões europeus. Assim como a cerveja em um pub, que diferentemente dos 5 euros cobrados em Dublin, custa apenas 50 cents. Através do relato dele, pude imaginar um pouco como seria o ambiente de descontração checo; diferente da mesa de sinuca encontrada nos nossos brasileiros, o pebolin faz a diversão.

Nas conversas de sábado à tarde, na maioria das vezes em sua casa, retrata uma característica que me faz imaginar ser a do povo checo: receptivo. A comida, servida fartamente, surge a cada pausa na conversa. A base da alimentação é a batata, que pode ser feita como uma espécie de nhoque, ralada e frita, ou assada com ketchup e cebola. 

Em Dublin, Michal teve talvez um dos prazeres que mais encanta grande parte dos seres humanos: estar diante do mar. Na Irlanda, a praia é deserta devido ao frio, mas oferece lindas paisagens quando o chuvoso tempo dá uma pausa. Segundo disse, foi uma experiência indescritível, uma das cena mais lindas das quais esteve diante. Completei, dizendo que depois de conhecer o mar, precisa conhecer a praia, e logicamente sem as três blusas sobrepostas que o frio daqui nos obriga; e comentei de Rio de Janeiro e Salvador. Ele prometeu em quatro anos me visitar, assim que conseguir um pouco mais de dinheiro.

Há poucos dias, Michal deu uma notícia que me deixou feliz. Agora, vai ser pai. Ele, alegre, com ar de despreocupado, espera ansioso a chegada de seu filho para jogar futebol e playstation. A boa notícia trouxe uma não tão boa assim. O camarada retornou para o país de origem. Lá, assim como na maioria (para não me arriscar a dizer em todos os países Europeus), o Estado fornece auxílio financeiro para a família. 

Michal e Aneta, há um ano juntos, vieram para uma nova vida em Dublin. Ganharam um filho e retornam para casa, para os braços dos pais, que agora são avôs. Michal e Aneta: um casal de amigos que mora do outro lado do oceano, num país gelado, com mulheres lindas, como ele mesmo disse. Agora se foram, mas na saudade os amigos permanecem ao nosso lado. No fim da minha estada por aqui, irei visitá-los. Espero conhecer o amado bebê. E, quem sabe, levar um presente bem brasileiro. 

Michal e Aneta, foi um prazer! Um grande abraço e boa sorte na vida! 

domingo, 12 de abril de 2009

O bem-estar social na crise

Aqui vive-se a condição de bem-estar social, em que o Estado fornece todo tipo de assistência ao cidadão. Se um casal tiver um filho, a preocupação em como sustentá-lo chega a ser inexistente se o problema for apenas dinheiro. Por filho concebido, os pais recebem cerca de 800 euros por mês até que os estudos sejam completados. 

Se estiver desempregado, existe o auxílio mensal correspondente ao mesmo valor, situação que permite que muitos dos irlandeses não queiram trabalhar. Este auxílio também se estende a todo cidadão europeu que tenha trabalhado por pelo menos um ano na Irlanda. Sem contar que, em qualquer tipo de emprego com jornada de apenas 3 horas ao dia, é possível receber o suficiente para custear moradia, saúde, alimentação, transporte e lazer. 

Uma sociedade acostumada ao grande auxilio estatal, mas que neste tempo de crise, está temerosa. Na última semana, todos os jornais de Dublin circularam com a mesma manchete “The budget from hell” – O orçamento do Inferno. Os anúncios são assustadores: cortes superiores a 1 bi para este ano, e mais de 4 bi para o próximo. As áreas afetadas serão justamente as que diferem a Europa de toda a América, com o bonito nome “Bem-Estar Social”, responsável por algumas das diferenças [entre eles e nós, brasileiros] anunciadas no primeiro parágrafo deste texto.

A batata não está esquentando apenas nas mãos dos irlandeses. Nossos conterrâneos brasileiros também têm encontrado bastante dificuldade na procura por emprego. O preconceito também começa a existir, já que sustentam a ilusória idéia de que são os latinos os responsáveis pelo fim das vagas dentro do mercado de trabalho. Notícias de conhecidos que trabalham em companhias aéreas indicam que os voos ao Brasil cada vez comportam mais brasileiros, e que grande parte retorna por conta da falta de trabalho. 

Sem dinheiro em caixa, a realidade irlandesa terá que mudar. O primeiro passo anunciado é pedir socorro ao FMI, mesmo fundo ao qual sempre fomos devedor, e do qual hoje, segundo Lula, viraremos credor. Os U$ 4,5 bi que o Brasil emprestará ao Fundo vai auxiliar a re-aceleração dos mercados mundiais, que tenho percebido ser uma verdadeira máquina, bem mais tecnológica que a nossa. Depois que esta tempestade passar, o auxílio que dermos à sociedade do bem-estar social, ou a dos loiros de olhos azuis como disse nosso presidente, não nos fará desfrutar desta condição. O bem-estar social continuará deste lado do mundo, enquanto pelo lado das Américas continuaremos sem moradia, salário digno, amparo no infortúnio ou mesmo uma condição real de sobrevivência e desenvolvimento. 

domingo, 15 de março de 2009

A diferença de padrões


Em pouco mais de um mês na Irlanda, pude conviver em uma típica casa Irish e outra formada por brasileiros, sueco e espanhol. Pude também presenciar e sentir a diferença nos padrões diários de sobrevivência e qualidade de vida de ambos os locais. E eles são muitos!

Logo na chegada tive a oportunidade de morar por duas semanas na casa da família Murphy. Apesar do intenso frio, todas as noites dormia com a mesma temperatura a que estava acostumado no Brasil. Chegava até a suar durante as madrugadas. O aquecedor instalado ao lado da cama me fazia esquecer da neve que costumeiramente caia do outro lado da janela.

Quando lavei uma parte de minhas roupas, elas secaram em apenas uma tarde, afinal, o aquecedor, que sempre estava ligado, supria toda a demanda. A hora do sagrado banho era o momento mais relaxante do dia: a água, quase fervendo, caía com a intensidade de uma cachoeira. Também era comum tomar dois banhos ao dia, assim como fazia no Brasil; um ao acordar, e outro antes de dormir.

O grande problema era a distância em relação ao centro de Dublin. Precisava de uma hora dentro do ônibus para sair do subúrbio, sem contar o tempo de espera para que ele passasse, além do deslocamento a pé até o próprio ponto de embarque. A água da casa irlandesa era filtrada, e todos os dias me deliciava com alguns dos chocolates típicos do país. A cerveja na geladeira era Budweiser, uma das mais caras por aqui. Tomei algumas delas enquanto jogava sinuca com o George, numa grande mesa que fica em uma das três salas do lugar. 

Também havia dois jardins, o da frente e dos fundos. Três banheiros, quatro quartos, um reservado apenas para mim, além de dois carros na garagem, um para cada motorista da casa. Como já disse em texto anterior, era difícil andar pela residência sem me deparar com um brinquedo ou não reparar na imensa TV de plasma, de alta definição, que ocupava espaço especial em uma das salas.

Duas semanas e já me mudei. Logo na chegada percebi que a temperatura da nova casa seria diferente. O heater (aquecedor) não estava ligado, apesar do frio que fazia ao lado de fora. Na primeira conversa, algumas regras me foram passadas. Entre elas, lavar roupa apenas à noite. Existem valores diferenciados, segundo o horário de consumo, para o preço da energia elétrica. O banho, preferivelmente, também teria que ser à noite, mas era necessário ligar o boiler (aquecedor a gás da água) com pelo menos 30 minutos de antecedência. Na primeira ducha senti outra, e talvez a mais dramática das diferenças: a água não tão quente assim, fica completamente gelada na hora de lavar a cabeça.

Os carros na garagem são substituídos pelas bicicletas na varanda do apartamento; e o quarto, que antes era apenas meu, hoje abriga mais quatro pessoas. O aquecedor deu lugar a um edredom e dois cobertores. Na primeira vez que lavei roupa no novo lar, era época de neve. Resultado: a calça jeans demorou cinco dias para secar. 

Os chocolates de sobremesa são comprados apenas quando o corpo necessita de algum doce. E a deliciosa loira gelada, a paixão da maioria dos brasileiros, tem marca e rótulo bem diferentes do Brasil. Numa garrafinha de vidro, parecida com um xarope e de nome FinkBrau, custa apenas 50 cent`s. Nem sempre elas cabem no frigobar que precisa ser socializado entre seis pessoas. Mas no frio que predomina aqui, basta colocar a bebida do lado de fora da janela que em poucos instantes estará bem gelada.

Diferenças nos padrões de vida, diferenças nas relações humanas. Quando me despedi da família Murphy, apenas George me estendeu a mão, sem insinuar sinal de qualquer abraço. Sarah, sua esposa, apenas acenou um tchau, assim como os três filhos, com os quais, no dia anterior, eu havia brincado de guerrinha de neve. Na atual residência, dos estudantes que vivem controlando as finanças, o aperto de mão é quase que uma rotina, assim como os sorrisos, os brindes nas garrafinhas de vidro e algumas piadas. Uma relação que aquece o ambiente gelado e que torna o heater um mero enfeite na parede.